Artigo de Jorge Silva Melo no Mil Folhas - Público sobre a entrevista de Gustavo Rubim a Joana Gorjão Henriques [II]

2006-06-19
[Parte II e final do artigo Ibsen em Portugal]


Jorge Silva Melo, «Ibsen em Portugal», in Mil Folhas (Público), 2006-VI-17

No artigo, Gustavo Rubim, aqui apresentado como “especialista” em Ibsen (mas o seu currículo apenas indica a meritória tarefa de ter traduzido “Hedda Gabler”... do inglês, e nem sei de que inglês, tantas as apropriações britânicas de Ibsen, bem trapalhonas algumas, depois da fabulosa Una Ellis-Fermor), “responsabiliza as companhias que nasceram antes e logo a seguir ao 25 de Abril” pela ausência de Ibsen. Para chamar os bois, os culpados seriam, por ordem de fundação, o Grupo 4-Novo Grupo (que abriu a nova sala com... “Peer Gynt”), a Comuna, a Cornucópia, a Barraca. Estes energúmenos filo-comunistas teriam silenciado Ibsen para dar lugar a Brecht, autor que Rubim, bruxo, considera “não ter futuro para já” por ser “autor de um teatro ideológico e conotado com o marxismo”.
Mas, como explica Rubim que Ibsen tenha integrado o repertório do brechtismo mais ideológico e tenha sido representado em Évora, Viana, Braga, nessa descentralização “conotada com o marxismo”? Que “A Dama do Mar” tenha sido feita na RTP numa realização de Maria João Rocha? Que “Hedda” tenha sido traduzida (também do inglês) pelos comunistas Artur e Helena Ramos?
Não haverá outras razões para a intermitência de Ibsen nos repertórios de Lisboa? Poderiam, em 76, Cintra ou Viegas (fundador da Barraca) ter feito o “Borkman”? Ou o “Solness”? Aos 20 anos? Céu Guerra poderia ter feito a “Hedda”, mas com que marido – Mário Viegas? E com que velho actor, poderia Manuela de Freitas fazer a Irene de “Quando Nós os Mortos ...” que tão bem lhe ficava? O Paulo Renato aceitava ir para a Comuna? É que os elencos de Ibsen são, ao contrário dos de Brecht ou de Strindberg, muito heterogéneos. Nas suas poucas personagens, há velhos, novos, muito velhos e até muito novos. E como o seu teatro é fundamentalmente realista será difícil termos, contra um marido de 25 anos, uma Nora de 50 (tinha-os Glicínia quando, em 73, foi Celimena no “Misantropo”, mas como fazer numa peça realista sobre o matrimónio...). Já Mariana Rey Monteiro me parecera uma Hedda fora da idade (e teria uns 48 quando a fez...).
Ibsen não foi feito no Nacional de Ribeirinho, nem de Brás Teixeira, nem no de Agustina, nem no de Pais, nem no de Lagarto. Ainda bem, diria eu. Gorki, Brandão, Tchekhov, Schnitzler, Shaw foram-no - para mal dos nossos pecados. Mas suspeitará alguém estes directores do Nacional, na sua maioria tão herdeiros do Teatro do Povo e do Teatro de Arte de Lisboa, de serem “conotados com o marxismo”? (Eu sou, sim senhor, mas nunca mandei nessas casas).
É quando, do Conservatório (onde “Os Pilares da Comunidade” foi texto de trabalho na época em esteve mais “conotado com o marxismo”) começam a sair notáveis actores (meados dos 80), que “Casa de Boneca” pode voltar, por Mário Feliciano, que a eles já consegue juntar gente de outros tempos que, por razões económicas mas não só, não aceitavam, anos antes, a miséria do teatro melhorzinho que por cá se fazia. E fazem-se, então, vários Ibsen (Graça Lobo, Mário Feliciano, Avilez, Luís Varela, Xosé Lago, Graça Correa). É que tinha ruído o império de Vasco Morgado (que, produzira o “Borkman” com Villaret e um muito atabalhoado “Inimigo do Povo” com Rogério Paulo) e o teatro institucional iniciara a dispendiosissima agonia que o leva, agora, ao “rentável” Fragateiro, antes de, como a TAP, lá ir parar a gestor brasileiro.
A História do Teatro é bem mais complexa do que quer Rubim, político. Depende de muitas coisas e nem sempre das primeiras escolhas. Quem escolhe – e é essa a beleza do teatro, tão parente do jornalismo - não pode “adiar” a peça “para outro século” e fá-lo dentro de parâmetros bem reais (dinheiro, elenco disponível, horário do futebol, sala, DocLisboa, Festa da Música...). Arte feita com a vida (de suor, cãs e dinheiro), é tarefa de tornar possível o impossível, debate contra as possibilidades. Que não são só económicas. Não o saber, escondê-lo, é mentir. E fazer insinuações como as que ouvi a Rubim na Feira do Livro, no lançamento das “Peças Escolhidas” , ou as que são citadas no Mil Folhas e estão no posfácio da edição em tom mais açucarado, só consagra a mentira, névoa sobre a História do Teatro que só os vivos podem negar.
E, já agora, como é que se chegou à afirmação, aqui reproduzida, segundo a qual Ibsen será “o mais encenado dramaturgo (...) depois de Shakespeare” (ah! como em tudo se infiltra a ideologia e cá temos “encenado” a substituir a expressão correcta, “representado”)? Que contabilista divino o confirma? Eu tenho muitas dúvidas que o seja. E tenho a certeza que, a sê-lo, serão só cinco peças as que alcançam os palcos. Daí o valor desta iniciativa da Cotovia, a de nos trazer uma série de peças de Ibsen, umas muito conhecidas, outras menos, outras nada (a belíssima “Pequeno Eyolf”!). E que bem traduzidas!, como no outro dia o provei, ao ouvir uma cena do “Borkman” pelas actrizes Gina Santos (as saudades que me faz a sua voz quebrada!), Carmen Dolores e Sylvie Rocha – e que cena mais linda, aquela primeira.
Só isso bastava para marcar este livro como um sonho sonhado há muito tempo. (E lembrar Emília de Araújo Pereira, a tradutora insone de “Espectros” e “Casa de Boneca” daqueles anos de esperança e luta que houve antes da Ditadura.)

Jorge Silva Melo
 
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