Entrevista de Gustavo Rubim a Joana Gorjão Henriques, Mil Folhas - Público, 10-VI-2006 [II]

2006-06-12
[Parte II do artigo Ausência de Ibsen em Portugal «é um escândalo artístico e cultural»]


Joana Gorjão Henriques, «Ausência de Ibsen em Portugal 'é um escândalo artístico e cultural'», in Mil Folhas (Público), 2006-VI-10

Antecipação do cinema

É um plano de publicação ao contrário: as primeiras peças a sair na Cotovia são as últimas que Ibsen escreveu. “Quando nós, os mortos, Despertamos” (1899), “John Gabriel Borkman” (1896), “O Pequeno Eyolf” (1894) e “O Construtor Solness” (1892) compõem o primeiro volume [ver caixa ao lado com o plano da publicação]. À excepção de “O Constructor Solness”, traduzida por Pedro Fernandes, as outras três peças foram traduzidas por Karl Erik Schollhammer e Fátima Mira Bastos. Ao mesmo tempo, a Cotovia lança “Vida de Ibsen”, de Alberto Saviano (que não é uma biografia, como o próprio autor escreve, “aqueles que lerem esta tua vida escrita por mim, dirão que da tua vida se diz pouco e se fazem muitas divagações”).
“Casa de Boneca”, a peça que muitas feministas adoptaram como bandeira (Nora, a personagem principal, divorcia-se), provocou escândalo na época e internacionalizou o autor, só está prevista sair no terceiro volume, em Fevereiro de 2007.
Para Gustavo Rubim, Ibsen é o dramaturgo a quem se atribui a fundação do teatro moderno por “uma coisa que parece muito simples”: o “corte com as peças históricas”. “As últimas 12 peças em prosa, com cenários realistas passadas algures na Noruega, transformaram a história do teatro radicalmente. O teatro passou a usar como tema o quotidiano.”
Quer dizer, Ibsen saiu das grandes paisagens e dos grandes temas históricos para entrar na sala de estar das pessoas comuns, ouvi-las conversar e analisá-las à lupa.
Apesar de cortar com a associação directa do teatro à literatura a partir de “Os Pilares da Sociedade” (1877), observa Rubim, os enredos e a construção de personagens “não são absolutamente diferentes da tradição”. “Uma peça de Ibsen não é incomunicável com Shakespeare”. Aliás, acrescenta, “a partir de determinada altura um tema básico de Ibsen, o fantasma, parece ter sido roubado ao Shakespeare, nomeadamente a ‘Hamlet’”.
Gustavo Rubim detecta mesmo na sua obra uma “síntese” da tradição do teatro ocidental abrindo, ao mesmo tempo, “caminhos” até então desconhecidos – algo que poucos conseguem ver, como escreve. É que, considera “os grandes dramaturgos do Século XX são ibsenianos: Eugene O’Nell, Samuel Beckett e Tenesse Williams.”
Por exemplo, Rubim defende que sobre as quatro peças finais “não é ousado dizer que há uma espécie de previsão do cinema” – como se Ibsen tivesse escrito argumentos cinematográficos. Não será por acaso que o realizador sueco Ingmar Bergman se inspirou tanto em Ibsen.
Um corpo que cai do alto de um “castelo no ar” em “O construtor Solness”, dois corpos engolidos pela montanha em “Quando Nós os Mortos, Despertamos”, cenas quase impossíveis de executar num palco: estas são também algumas particularidades que apontam para a antecipação do cinema. “Podem ser consideradas como dificuldades técnicas, mas fazem parte da estética das peças. As últimas peças são peças de exterior e de difícil construção em palco. E esta dificuldade é um sinal que aponta para outros caminhos do Teatro.”

[continua...]
 
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