Artigo de Gustavo Rubim no Mil Folhas - Público sobre o artigo de Jorge Silva Melo
2006-06-26
Gustavo Rubim, "Quando Ibsen se dissolve no ar", in Mil Folhas (Público), 2006-06-24
Quando Ibsen se dissolve no ar
Tinha toda a razão Henrik Ibsen, quando disse algures que quem escreve lavra uma sentença sobre si próprio.
No insólito arrazoado que fez publicar no Mil Folhas da semana passada – “Ibsen em Portugal” – Jorge Silva Melo julgou, pelo contrário (não é ibseniano quem quer), ter sentenciado definitivamente algumas afirmações que fiz à jornalista Joana Gorjão Henriques e que se podem ler, por sua vez, no Mil Folhas de 10 de Junho, sob o título “Ausência de Ibsen em Portugal é um escândalo artístico e cultural”.
Que Silva Melo quis e tentou sentenciar-me, até pessoalmente, é uma evidência, visto que me chamou, contando por alto, cinco nomes feios: mentiroso, bruxo, simplista, tradutor duvidoso e, no plano geral, ignorante.
Os insultos trazem escancarada a intenção, não só de instalar quezília, mas de a instalar num plano para o qual espera que eu me deixe arrastar. Quanto a isso, nada feito. Não desço. Fica para ele o esforço de subir, se quiser. Mas só se quiser, porque eu não costumo impor a ninguém o nível a que estou habituado.
Como se aplica a frase de Ibsen a este episódio? Simples. Por muito que eu procurasse, jamais encontraria melhor demonstração para a minha tese – a da fraca presença de Ibsen no teatro português actual – do que o próprio escrito de Silva Melo. É que nada sai dali tão nítido como o desaparecimento de Ibsen a que eu, precisamente, me referira. Um caso clássico do peixe a morrer pela boca.
De facto, é o próprio Silva Melo quem diz, e diz bem, que a síntese das minhas ideias, publicada por Joana G. Henriques, é um “texto longo”: três páginas de jornal. O que lhe faltou dizer (“et pour cause...”) é que, dessa extensão toda, nove partes em dez são ocupadas a falar do teatro de Ibsen, a propósito das quatro últimas peças do dramaturgo, agora editadas num volume da Cotovia.
Ora, o que tem Silva Melo a dizer acerca de Ibsen? Que eu desse por isso, absolutamente nada, nem uma palavra. Fosse por incapacidade ou desinteresse (venha o diabo e escolha!), preferiu agarrar-se àquele único décimo do texto em que eu falo criticamente do destino de Ibsen em Portugal, no período pós-25 de Abril de 1974. Como qualquer pessoa que saiba juntar letras compreende, é com base no conhecimento e na interpretação de Ibsen que eu lamento que as peças de Ibsen não sejam no mínimo dez vezes mais conhecidas entre nós do que realmente são. Quanto a isto, Silva Melo teve de se fazer desentendido – truque fácil para um actor - , porque não tem à mão nada que se pareça com uma interpretação de Ibsen.
O resultado está à vista. Eu falei a Joana G. Henriques da reinvenção da personagem feminina no teatro de Ibsen. Silva Melo, em troca, manda-me ler uma resma de preciosos autores masculinos, desde D. João da Câmara a Joaquim Paço d’Arcos. Eu disse que Beckett é um dramaturgo da linhagem ibseniana, o que está longe de ser coisa que se diga todos os dias. Silva Melo, atrapalhado, responde-me que se a Maria do Céu Guerra podia fazer a Hedda Gabler, já Mário Viegas não podia fazer o seu marido (ai não?...). Eu até disse que nas últimas peças de Ibsen se pode ver uma antecipação do cinema. Silva Melo, que por acaso também faz filmes, preferiu lembrar-me que Paulo Renato não ia nessa de colaborar em companhias de teatro independente.
Em resumo: sou eu a falar para um lado, e Silva Melo a desconversar para o outro. Uma página inteira do Mil Folhas gasta por Silva Melo a falar de tudo menos de Ibsen! Um desperdício. Se me queria dizer que não foi a preferência por Brecht a razão pela qual, nos últimos 32 anos, Ibsen foi muito menos representado do que Brecht (e cheira a paradoxo), macacos me mordam se era preciso despejar-me em cima uma lista de 49 nomes, ilustres e nem tanto, do teatro português dos ultimo... 90 anos! Se a ideia era inverter os papéis, pondo-me no lugar de aluno, falhou redondamente. Um mínimo de pedagogia histórica aconselhava, pelo menos, que tivesse lembrado a actriz italiana Eleonora Duse, que foi quem tornou Ibsen famoso pelas nossas bandas, quando veio representar a “Hedda Gabler” ao Teatro D. Amélia (ao S. Luiz, portanto), corria o ano de 1898. Nem isso.
Não me venha, pois, Silva Melo dar conselhos sobre a melhor tradução de Ibsen em Inglês, nem fazer insinuações rasteiras sobre a solidez do meu currículo. Eu não aceito uma coisa nem outra vinda de quem nunca representou, encenou ou traduziu, sequer do galego, quanto mais do inglês, qualquer texto de Ibsen. Não me admira que ache “fabulosa” a tradução “britânica” de Una Ellis-Fermor, pois bruxo como sou, aposto uma carcaça contra um pão de quilo que dos Estados Unidos da América (onde também se fala inglês, “hélas”!) nunca lhe chegou notícia de um senhor chamado Rolf Fjelde. Não é grave, ainda vai a tempo. É só uma questão de se convencer que em matéria de Ibsen, há mais mundo para além da Penguin e da Europa-América.
Decididamente, temos de seguir outra via, se queremos algum debate sério sobre Ibsen e Ibsen em Portugal. A essa outra via chamo eu (olha, lá vem o simplista!) a via da verdade. Aprende-se, para dar bons exemplos, com João Mora, que disse a Joana G. Henriques no dia 23 de Maio (Público p.29): “É preciso não esquecer que temos tido um teatro nacional. Têm medo de fazer o que não está na moda.” Incontestável. E, na mesma ocasião, corroborou com igual sentido da verdade Luís Miguel Cintra: “Não tem havido uma política de repertório com alguma linha de orientação.” Irrefutável. E sobre o Teatro Nacional pouco mais haverá a dizer, ficando explicadíssimo porque lá não se faz Ibsen já 34 anos.
Sobre Ibsen propriamente dito do mesmo artigo voltaria a citar Cintra, que se lhe refere como “autor fundamental”; notaria que Carlos Avilez sabe do que fala quando diz que “um dos problemas de Ibsen é o grau de complexidade de interpretação das peças”; mas termino, sublinhando esta lição do encenador João Lourenço: “A liberdade e a verdade são condições supremas na vida, e em todas as peças [de Ibsen] isto aparece. É um autor que continua actual, um escritor do nosso tempo.”
Ou nos decidimos a tirar daqui alguma consequência, ou receio que alguém acabe a falar sozinho – e desconfio que não vou ser eu.
Gustavo Rubim
Professor universitário, ensaísta, tradutor de teatro
Tinha toda a razão Henrik Ibsen, quando disse algures que quem escreve lavra uma sentença sobre si próprio.
No insólito arrazoado que fez publicar no Mil Folhas da semana passada – “Ibsen em Portugal” – Jorge Silva Melo julgou, pelo contrário (não é ibseniano quem quer), ter sentenciado definitivamente algumas afirmações que fiz à jornalista Joana Gorjão Henriques e que se podem ler, por sua vez, no Mil Folhas de 10 de Junho, sob o título “Ausência de Ibsen em Portugal é um escândalo artístico e cultural”.
Que Silva Melo quis e tentou sentenciar-me, até pessoalmente, é uma evidência, visto que me chamou, contando por alto, cinco nomes feios: mentiroso, bruxo, simplista, tradutor duvidoso e, no plano geral, ignorante.
Os insultos trazem escancarada a intenção, não só de instalar quezília, mas de a instalar num plano para o qual espera que eu me deixe arrastar. Quanto a isso, nada feito. Não desço. Fica para ele o esforço de subir, se quiser. Mas só se quiser, porque eu não costumo impor a ninguém o nível a que estou habituado.
Como se aplica a frase de Ibsen a este episódio? Simples. Por muito que eu procurasse, jamais encontraria melhor demonstração para a minha tese – a da fraca presença de Ibsen no teatro português actual – do que o próprio escrito de Silva Melo. É que nada sai dali tão nítido como o desaparecimento de Ibsen a que eu, precisamente, me referira. Um caso clássico do peixe a morrer pela boca.
De facto, é o próprio Silva Melo quem diz, e diz bem, que a síntese das minhas ideias, publicada por Joana G. Henriques, é um “texto longo”: três páginas de jornal. O que lhe faltou dizer (“et pour cause...”) é que, dessa extensão toda, nove partes em dez são ocupadas a falar do teatro de Ibsen, a propósito das quatro últimas peças do dramaturgo, agora editadas num volume da Cotovia.
Ora, o que tem Silva Melo a dizer acerca de Ibsen? Que eu desse por isso, absolutamente nada, nem uma palavra. Fosse por incapacidade ou desinteresse (venha o diabo e escolha!), preferiu agarrar-se àquele único décimo do texto em que eu falo criticamente do destino de Ibsen em Portugal, no período pós-25 de Abril de 1974. Como qualquer pessoa que saiba juntar letras compreende, é com base no conhecimento e na interpretação de Ibsen que eu lamento que as peças de Ibsen não sejam no mínimo dez vezes mais conhecidas entre nós do que realmente são. Quanto a isto, Silva Melo teve de se fazer desentendido – truque fácil para um actor - , porque não tem à mão nada que se pareça com uma interpretação de Ibsen.
O resultado está à vista. Eu falei a Joana G. Henriques da reinvenção da personagem feminina no teatro de Ibsen. Silva Melo, em troca, manda-me ler uma resma de preciosos autores masculinos, desde D. João da Câmara a Joaquim Paço d’Arcos. Eu disse que Beckett é um dramaturgo da linhagem ibseniana, o que está longe de ser coisa que se diga todos os dias. Silva Melo, atrapalhado, responde-me que se a Maria do Céu Guerra podia fazer a Hedda Gabler, já Mário Viegas não podia fazer o seu marido (ai não?...). Eu até disse que nas últimas peças de Ibsen se pode ver uma antecipação do cinema. Silva Melo, que por acaso também faz filmes, preferiu lembrar-me que Paulo Renato não ia nessa de colaborar em companhias de teatro independente.
Em resumo: sou eu a falar para um lado, e Silva Melo a desconversar para o outro. Uma página inteira do Mil Folhas gasta por Silva Melo a falar de tudo menos de Ibsen! Um desperdício. Se me queria dizer que não foi a preferência por Brecht a razão pela qual, nos últimos 32 anos, Ibsen foi muito menos representado do que Brecht (e cheira a paradoxo), macacos me mordam se era preciso despejar-me em cima uma lista de 49 nomes, ilustres e nem tanto, do teatro português dos ultimo... 90 anos! Se a ideia era inverter os papéis, pondo-me no lugar de aluno, falhou redondamente. Um mínimo de pedagogia histórica aconselhava, pelo menos, que tivesse lembrado a actriz italiana Eleonora Duse, que foi quem tornou Ibsen famoso pelas nossas bandas, quando veio representar a “Hedda Gabler” ao Teatro D. Amélia (ao S. Luiz, portanto), corria o ano de 1898. Nem isso.
Não me venha, pois, Silva Melo dar conselhos sobre a melhor tradução de Ibsen em Inglês, nem fazer insinuações rasteiras sobre a solidez do meu currículo. Eu não aceito uma coisa nem outra vinda de quem nunca representou, encenou ou traduziu, sequer do galego, quanto mais do inglês, qualquer texto de Ibsen. Não me admira que ache “fabulosa” a tradução “britânica” de Una Ellis-Fermor, pois bruxo como sou, aposto uma carcaça contra um pão de quilo que dos Estados Unidos da América (onde também se fala inglês, “hélas”!) nunca lhe chegou notícia de um senhor chamado Rolf Fjelde. Não é grave, ainda vai a tempo. É só uma questão de se convencer que em matéria de Ibsen, há mais mundo para além da Penguin e da Europa-América.
Decididamente, temos de seguir outra via, se queremos algum debate sério sobre Ibsen e Ibsen em Portugal. A essa outra via chamo eu (olha, lá vem o simplista!) a via da verdade. Aprende-se, para dar bons exemplos, com João Mora, que disse a Joana G. Henriques no dia 23 de Maio (Público p.29): “É preciso não esquecer que temos tido um teatro nacional. Têm medo de fazer o que não está na moda.” Incontestável. E, na mesma ocasião, corroborou com igual sentido da verdade Luís Miguel Cintra: “Não tem havido uma política de repertório com alguma linha de orientação.” Irrefutável. E sobre o Teatro Nacional pouco mais haverá a dizer, ficando explicadíssimo porque lá não se faz Ibsen já 34 anos.
Sobre Ibsen propriamente dito do mesmo artigo voltaria a citar Cintra, que se lhe refere como “autor fundamental”; notaria que Carlos Avilez sabe do que fala quando diz que “um dos problemas de Ibsen é o grau de complexidade de interpretação das peças”; mas termino, sublinhando esta lição do encenador João Lourenço: “A liberdade e a verdade são condições supremas na vida, e em todas as peças [de Ibsen] isto aparece. É um autor que continua actual, um escritor do nosso tempo.”
Ou nos decidimos a tirar daqui alguma consequência, ou receio que alguém acabe a falar sozinho – e desconfio que não vou ser eu.
Gustavo Rubim
Professor universitário, ensaísta, tradutor de teatro