Notícias (Público e Diário de Notícias)
Pizarro abandona recital ao quarto toque de telemóvel
Devia ser uma noite especial. Além da actuação de um dos mais notáveis pianistas portugueses, comemoravam-se os 25 anos de carreira de Artur Pizarro, que deu o seu primeiro recital no Teatro São Luiz quando tinha apenas 11 anos. Mas o evento, inserido no Mês da Música, teve um lamentável desfecho devido à incúria do público. Mesmo depois de um sonoro aviso no inicio do espectáculo, vários telemóveis teimaram em dar sinal de vida. Pizarro viu-se obrigado a interromper e recomeçar uma das belíssimas peças de Mirroirs, de Ravel, mas os toques não ficaram por ali, para além de outros ruídos na sala. Ao quarto toque, no meio do conhecido Clair de Lune, da Suite Bergamasque, de Debussy, o pianista levantou-se para dizer: “Só volto a tocar depois de atender e sair da sala.” Ninguém se mexeu e Pizarro abandonou o palco. Alguns minutos depois o director artístico do teatro, Jorge Salavisa, veio anunciar que “este momento tão especial para o pianista estava terminado” e o recital de quinta-feira (21h) não foi concluído.
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Barros, Eurico de, “A derrota do silêncio”, in DN Online, 2005-III-12
A derrota do silêncio
Lisboa, Teatro São Luiz, noite de quinta-feira. Um telemóvel toca logo no início do recital do pianista português Artur Pizarro e é sonoramente atendido. O músico pára a execução da peça e retoma-a logo a seguir. Mais adiante, torna a ouvir-se outro toque, mas desta vez Pizarro não pára. A seguir ao intervalo, soa outro telemóvel, longamente, porque o proprietário nem se digna desligá-lo. Artur Pizarro deixa de tocar e diz à criatura "Atenda, que eu paro. Mas saia". E pega nas partituras, levanta-se e vai-se embora. Há burburinho na sala e é anunciado que o pianista não regressará. O dono do telemóvel que estragou a noite a Pizarro e ao público do São Luiz dirige-se à bilheteira para exigir o dinheiro de volta, porque o recital foi interrompido.
O telemóvel já substituiu a tosse cava e o barulhinho do papel de rebuçado como grande elemento perturbador nas salas de espectáculos. Mas o fenómeno não se deve apenas a um punhado de esquecidos crónicos que nunca desligam os telemóveis no teatro, no cinema, na ópera ou no recital, nem à falta de educação e consideração de meia dúzia de grosseiros, os mesmos que antes de haver telemóveis faziam barulho e falavam alto nos espectáculos. Ele é a manifestação de um mal-estar social muito maior.
O adolescente parvinho, o novo-rico cultural, o grunho das novas tecnologias, a cinquentona impertinente que se vão sentar numa plateia ou num auditório sem silenciar o telemóvel e o atendem ostensivamente enquanto os actores interpretam, os músicos tocam, o filme corre ou os cantores vocalizam, já não sabem ser espectadores. Perderam a noção do que é assistir a um espectáculo partilhado colectivamente. A sociedade em que nasceram e foram "educados" é uma sociedade que tem horror ao silêncio e só está bem no meio do barulho, incomode a quem incomodar. A cultura em que vivem é a da comunicação redundante, da palavra vazia, do falar para dizer nada mas até se ficar sem voz, alimentada pelas empresas de telecomunicações e pelas campanhas de publicidade. No nosso mundo há educação a menos e som a mais. Admiram-se por isso que toquem cada vez mais telemóveis e sejam atendidos nas salas de espectáculos? Habituem-se!
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Mariano, Bernardo, “Telemóveis destruíram recital de Artur Pizarro”, in Diário de Notícias, 2005-III-13, pp. 41
Crítica Música
Telemóveis destruíram recital de Artur Pizarro
Intérprete. Artur Pizarro
Obras. Ravel, Liszt, Dubussy e Rachmaninov
Local. Teatro São Luiz
Era para ser um recital de festa e celebração em honra a uma carreira que naquela sala escrevera a primeira letra.
Era para ser uma oportunidade – e não são muitas, por cá – de ouvir ao vivo um grande pianista português estabelecido no estrangeiro.
Era para ser um programa que começa com Ravel, prosseguia com Liszt, continuava com Rachmaninov.
Era para ser uma grande noite de música, coroada, quem sabe, por vários extras e público de pé.
Era para ser… mas não foi!
Foi, isso sim, uma vergonha, feita em partes iguais de desfaçatez, boçalidade e arrogância
Na origem de tudo, uma vez mais, os famigerados telemóveis, a máquina que acabou de uma vez por todas com qualquer esperança de haver públicos educados em Portugal (poderemos conservar uma réstia longínqua de esperança?...)
No recital de Artur Pizarro, o desfecho anunciou-se cedo: mal tinha o pianista iniciado Oiseaux tristes, segunda peça de Miroirs, de Ravel, soou o primeiro. O que é ainda mais espantoso é as pessoas ficarem à espera que do outro lado desliguem (?) em vez de sacarem do “bicho” ao primeiro som e logo o silenciar. Já que não o desligam antes de entrar na sala, o máximo aceitável seria que ao menos o pusessem no mudo e em modo de vibração! Mas não: o senhor esperou, atendeu e ainda dentro da sala soltou um sonoroso “Estáá?” O início da conversa ainda se ouviu bem dentro do auditório! Artur Pizarro interrompeu a execução e esperou que regressasse o silêncio.
Na peça seguinte, Une barque sur l'ócéan, a meio da execução, novo toque, agora num camarote. Desta feita, Artur Pizarro não se deteve…
Veio a segunda parte e, no Clair de lune (logo onde!!) da Bergamasque de Debussuy, sucedeu o caso acima referido e contado ontem nestas páginas por Eurico de Barros. Era demais e Pizarro deixou o palco. Veio Jorge Salavisa dizer que o recital não continuaria. Houve palmas para a atitude do pianista, mas o mal estava feito. […]