Notícias (Actual - Expresso)

2006-01-20
Cabrita, Alexandra, "Uma Programação Assente no Conhecimento", in Actual - Expresso, nº 1733, 14-I-2006


UMA PROGRAMAÇÃO ASSENTE NO CONHECIMENTO


Carlos Fragateiro quer um Teatro Nacional activo e maior circulação pelo país

Há dez anos à frente do Teatro da Trindade, Carlos Fragateiro será o novo director do Teatro Nacional D. Maria II. Nomeado sob polémica, acusado de populista e dirigista e alvo de críticas da classe artística, diz-se capaz de assumir o desafio e de obter resultados a breve trecho com um orçamento limitado.
Quando é que começa as negociações do Ministério da Cultura (MC) consigo para ocupar o cargo de director do Teatro Nacional D. Maria II?
Comecei por conversar com o secretário de Estado da Cultura, Mário Vieira de Carvalho, em Julho. Mas as minhas relações com um amigo comum, Cesário Costa, maestro das óperas do Teatro da Trindade, com quem tenho um projecto de recuperação das óperas portuguesas.
E então abordaram o teatro do D. Maria?
Fomos caminhando nesse sentido progressivamente. A minha ideia sempre foi dar continuidade e sentido ao grande investimento que o Estado faz na rede nacional de cineteatros, muitos dos quais já têm equipa, equipamentos e programadores, embora lhes falte uma coisa essencial, que são conteúdos. É preciso saber qual é a produção portuguesa efectiva para alimentar essa rede.
É esse o papel do Teatro Nacional?
É, mas não só. Estrategicamente, a grande aposta do Estado tem de ser o incentivo à criação de conteúdos. Em linguagem informática, é preciso arranjar «software» para os muitos computadores que existem pelo país fora. O Trindade sempre fez itinerância; porque é que os teatros nacionais não o fazem? Têm obviamente de chegar a todo o país ou não estaremos a falar de serviço público.
Apresentou ao MC uma proposta de desenvolvimento para o Teatro Nacional?
Sim. E cheguei a ele há muito pouco tempo, num processo de reflexão que foi conjunto. O meu projecto e o projecto do Ministério da Cultura faz sentido para um país com poucos meios financeiros mas que tem de actuar com o pouco que possui. Na práctica, aquilo que proponho é que a instituição deve estar ao serviço dos artistas e dos seus projectos pessoais, precisa sim de princípios que tenham a ver com o país, que intervenham na sociedade e tenham sentido de utilidade pública. A cultura tem de estar ao serviço do desenvolvimento.
A partir dessa proposta é que lhe foi formalizado o convite para director do Nacional?
Sim, o convite foi-me formalizado há uns dias.
Aceitou-o de pronto?
Naturalmente. Penso que é um desafio. Aceitei um convite que muita gente recusou para um projecto arriscado mas no qual acredito que tenho capacidade para o realizar um trabalho eficaz. Para isso, conto com a minha equipa com o arquitecto José Manuel Castanheira, um cenógrafo com currículo internacional que tem sido permanentemente silenciado em Portugal.
O nome de José Manuel Castanheira foi uma proposta sua?
Sim.
Aposta no actual modelo do D. Maria?
Não a minha aposta é noutro modelo que não o de sociedade anónima, mas ainda é cedo para falar dele.
Que Teatro D. Maria é que quer?
Em termos sociais, a minha preocupação é que o grande défice é o da inteligência e da sensibilidade. A grande luta é a da invenção. Um teatro tem de trabalhar ao nível da inteligência e da sensibilidade, tem de ser um laboratório de novas formas de vida, de novos modos de olhar o mundo, de novas ideias.
O que significa isso?
Tudo o que faço se baseia em quatro triângulos. Um pequeno triângulo que liga a matemática à língua e à música, que são os instrumentos e as disciplinas de treino do cérebro, que quando se alargam a uma dimensão superior formam o triângulo do conhecimento – arte, ciência e filosofia. Esse triângulo, em termos sociais, traduz-se na memória do passado, na capacidade de intervir no presente e de ficcionar o futuro, acabando naquilo que inquieta o Homem, que é o que se passa no Universo, o que se passa dentro de nós ao nível do cérebro e o que se passa no centro da Terra, tudo coisas que desconhecemos totalmente.
E onde é que fica o Teatro Nacional?
Juntando estes quatro triângulos, proponho uma programação centrada no conhecimento. Quero que sintamos que, no Rossio, aquela casa faz um teatro que vai à memória buscar de volta os clássicos, que conseguem falar além do seu tempo. E, simultaneamente, pretendo que o D. Maria seja capaz de intervir no mundo de hoje. Em Portugal, temos de enfrentar a nossa relação mal resolvida com África, sobre a qual começam a aparecer, timidamente, alguns textos a que é preciso dar voz. E temos de encarar de frente a emigração e a multiculturalidade. O D. Maria será a casa da dramaturgia portuguesa, no sentido em que é urgente falar-mos sobre as nossas histórias e as histórias dos outros num espaço de questionamento.
A dramaturgia portuguesa será predominante no Teatro Nacional?
Tem de ser, mas não só. E tem de ser porque aquele é o espaço do risco. É preciso que se faça ali o mesmo que se faz na televisão. Ao princípio, ninguém achava que tínhamos condições para produzir ficção portuguesa e agora ela existe em todos os canais. Já ninguém a contesta. O Nacional pode e deve promover a dramaturgia portuguesa. No entanto, não podemos ficar fechados no nosso mundo. Isso só faz sentido em confronto com uma rede internacional de dramaturgia. Para isso, conto com a colaboração de José Sanches Sinisterra [dramaturgo que gere um conjunto de teatros em Florença e que apresenta trabalhos com regularidade no Brasil e no México]. Ele vai dirigir uma oficina permanente de dramaturgia que cruze o trabalho dos portugueses com o dos estrangeiros.
Tem mais novidades?
Tenho. Por exemplo, para conseguir desenvolver projectos que abordem temáticas emergentes terei no D. Maria uma equipa multidisciplinar, vinda das várias áreas do conhecimento, que regularmente vá reflectindo sobre as grandes questões que atravessam o mundo e que têm de ser trabalhadas a nível de ficção.
E quanto à dramaturgia estrangeira?
Teremos permanentemente um observador a circular pelo mundo, na Internet, que nos irá fazer um relatório semanal sobre o que se produz a nível mundial no universo dos espectáculos de teatro e da dramaturgia internacional contemporânea.
Que outros trunfos quer jogar no D. Maria?
Quero apostar na adaptação dos grande romances portugueses e na sua internacionalização. Portugal é um centro de excelência de escrita. Saramago, Lobo Antunes, Lídia Jorge, Miguel Sousa Tavares são todos autores de grandes textos que já provaram que funcionam em cena. É preciso internacionalizá-los através de uma profunda e estratégica com teatros em Espanha, no Brasil e em todo o espaço ibero-americano. Neste projecto, vou ter a colaboração de intelectuais de referência, luso-descendentes, embaixadores de Portugal no mundo, que podem trazer até nós e levar de cá um conjunto diversificado de textos. Emanuel Demarcy [que dirige um centro dramático em França] e Paula de Vasconcelos [a trabalhar no Canadá] são dois nomes com que conto.
Foi esta proposta que apresentou ao MC?
Exactamente, foi esta a proposta provinciana e retrógrada que apresentei.
E o que acontecerá aos compromissos já assumidos pelo Teatro Nacional em termos de programação?
Serão cumpridos.
Como é que reage às acusações de populismo e dirigismo que lhe são dirigidas?
Estou a ser atacado, é um facto, mas o meu pecado mais grave foi ter levado à cena uma peça do professor Freitas do Amaral, que hoje é só o ministro dos Negócios Estrangeiros. De resto, devo dizer que eu sou um mero pretexto para se atingir a ministra da Cultura. A única resposta que tenho para isso são as minhas ideias, a minha experiência, acumulada ao longo de quase dez anos no Trindade. Um teatro que não passava de uma estrutura moribunda e que transformei num espaço aberto ao público e a circular pelo país.
Mas não tem o apoio da classe artística…
Não é a classe artística que está contra mim. Há sim uma reacção desfavorável de um pequeno núcleo com gente significativa que tem acesso à comunicação social. Gente que tem poderes que vão para além dos poderes visíveis à luz do dia mas que não representa a maioria da classe teatral.
As manifestações, os abaixo-assinados, as petições e cartas abertas ao primeiro-ministro não o incomodam?
Pode parecer pretensioso dizer que não, mas sinceramente não me incomodam nada. Põem-me triste, pela capacidade que as pessoas têm de falas de coisas que não entendem, que não estão explicadas e que são aquilo que não são. E, neste quadro, o comentário do professor Marcelo Rebelo de Sousa na RTP é exemplar do vazio e do «non sense» a que as análises sobre este assunto chegaram. É incrível ver na manifestação críticos de teatro! Que contaminação existe e que distância têm eles sobre as produções que criticam a analisam?
Mas não sente um certo receio?
Sinto-me no combate entre a ignorância e o conhecimento. Estou no interior desse combate e de uma forma muito intensa.
Sempre defendeu que as direcções dos teatros nacionais deviam ser eleitas através de concursos públicos, mas chega ao D. Maria por nomeação directa…
Tenho consciência de que há uma contradição na minha nomeação. Mas sinto que estou num tempo de transição. Na situação que o D. Maria atravessa era impossível avançar para concurso público com uma análise serena. Se dentro de um ou dois anos houver condições para que isso aconteça e se eu não for um dos principais impulsionadores, então podem acusar-me de profunda incoerência.
Já sabe com que verbas vai contar para dirigir o D. Maria?
Com cerca de 1,9 milhões de euros para produção, num orçamento de seis milhões de euros. Há dinheiro suficiente para fazer programação séria e de qualidade, entrar nas redes internacionais, pôr as salas todas a funcionar, dar formação, fazer co-produções internacionais, levar por diante o centro de documentação e circular pelo país.
Tem a certeza?
Sim, tenho. Para começar, o nosso compromisso é o de irmos ganhar metade do que as pessoas que lá estão recebem. Vamos ser remunerados de acordo com as regras dos institutos públicos e não segundo as regras das sociedades anónimas, onde é a gestão que autodetermina os seus próprios ordenados.
 
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