«Sobre o lado esquerdo» (XXIX)

2005-12-17
Papai Nöel às Avessas

A Afonso Arinos (sobrinho)

Papai Nöel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a electricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Nöel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papais-Noéis são todos de cara rapada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente da república de celulóide.

Papai Nöel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de Alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldado presidente brigavam por causa do aperto.

Os pequeninos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Nöel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.

Carlos Drummond de Andrade, Poesia Completa, Editora Nova Aguilar
 
posted by CTC at 21:11, |