«Sobre o lado esquerdo» (XXVIII)

2005-12-06
[A Pancada de Molière aconselha à leitura do texto em «Ninguém se mexa! Mãos ao ar» (III) antes da leitura do texto O Homem Que Não Sabe Escrever de Almada Negreiros.
NOTA: A grafia utilizada respeitou tão rigorosamente quanto possível a que foi utilizada pelo autor no texto publicado no Diário de Lisboa.]



O HOMEM QUE NÃO SABE ESCREVER

O maior desgosto de Domingos Dias Santos era não saber escrever.
A sua vida estava cheia de desgostos, mas todos se resumiam em um único – não saber escrever.
Domingos Dias Santos, mais conhecido pelo Domingos, ou o Dias, ou ainda o Santos, só, sem mais nada, era natural da rua do Alecrim. Tinha a instrução primaria, o curso dos liceus, com sexto e sétimo de letras, depois Coimbra até ao fim, com três anos a mais, e não sabia escrever – o seu desgosto.
Tendo feito um exame seriissimo de consciencia, observou que a unica coisa que ele podia ter adquirido nos liceus e universidades era saber escrever, contudo, nem isso, estava exatamente como tivesse nascido hoje, sem nada.
Tinha lido muito, demais tinha a impressão de ter lido tudo, e, talvez, que fosse isso o que o emperrasse na escrita; mas, o que não havia duvida nenhuma é que, sempre que se sentia acometido de uma vontade irresistivel de escrever e a isso se resolvia, ficava absolutamente vasio só pelo facto de ter pegado na caneta para começar. Será assim a ausencia de vocação para escritor? e as hesitações sucediam-se no seu espirito, tão atabalhoadamente, que o pobre Dias já anuncia em nunca mais ter vontades irresistiveis de escrever.
Todas as manhãs dava ordens para que lhe comprassem todos os jornais que há, e lia, um por um, lia todos e parecia-lhe, coitado, que aqueles jornais eram todos escritos por pessoas que, como ele, não sabiam escrever. Então, punha-se a pensar que isto de não saber escrever pode não ser um grande desgosto. E, talvez, que sim; ele é que era um exagerado, aumentava tudo, tudo era para ele motivo de miseria ou de violencia, talvez que ele tivesse sofrido por não saber escrever, mais do que a conta do que se deve sofrer por isso.
Domingos Dias Santos nunca tinha pensado assim, sentia-se ousado em julgar mal escritos tantos jornais, revistas e livros assinados por tanta gente de acordo. Já não era a primeira vez que ele se reconhecia tão forte quando estava sósinho a julgar os outros. O pior era, sem duvida, quando ele deixava de estar sósinho e vinha ter com os outros, estes tinham maneiras tão diferentes e tão legitimas, que o pobre Domingos ficava completamente vasio; tal qual, como quando pegava na pena para escrever.
- Nada, aqui há de haver saida por força! pensava o Dias com a cabeça o mais para diante possível, e prometeu a si próprio não largar dentre mãos o assunto, até que a cabeça já não pudesse mais.

*

Naquela noite, depois do jantar, Domingos não saiu. Tinha comprado um frasco de tinta inglesa, um caderno de papel, caneta, três aparos, uma fôlha de mata-borrão e um pacote de velas de estearina. Fechou a porta á chave e sentou-se claramente para escrever.
A primeira surpreza foi o assunto: Domingos observou que tinha comprado tudo o que é necessario para escrever, mas faltava-lhe o assunto. Tinha-se esquecido do assunto; não pode uma pessoa lembrar-se de tudo, nem admira, a primeira vez… E o assunto não vinha. Havia umas palavras que apareciam em cima de textos por escrever, palavras impressas em letras maiores, distintas, mas estas palavras sofriam de falta de novidade, estavam cansadas de servir de titulo a tantos, que precisam de ganhar dinheiro para levar para casa, coitados.
Mas, naquela noite, Domingos estava plenamente resolvido a dar um passo em frente, desse lá por onde desse. Hesitou imenso se deveria começar por uma dissertação sobre o Outono, ou por uma apologia da humildade, ou outra escolha ainda mais feliz, em que ele caísse de seguida na simpatia de certa gente de gôsto. Mas, de repente, veiu ao de cima uma revolta. Não! isto é contemporisar, eu sou eu, se aceito os outros, tais quais os são, tambem exijo que me reconheçam, e optou por uma tirada de sinceridades individuais e regionalistas, que não podiam portanto, deixar de ser originais. Começou logo a apertar os nervos na direcção de sinceridade, e a perguntar a si próprio o que ele conhecia e o que sabia, conseguiu ir tão longe por essa divagação de apuro, que acertou comsigo, ali sósinho na água-furtada da rua do Alecrim, sua terra natal. Pobre regionalismo este, nem ao menos tinha nascido, para gloria da literatura, lá em terras de províncias afastadas, aonde se fala arrevesado e antigo, tão antigo, que já está na ultima, já quasi que não serve. Pois a quem podia interessar a vida de um Domingos numa água-furtada da rua do Alecrim? Não há duvida, para ser escritor é necesario ter frequentado uma paisagem decente ou um panorama vistoso; não é agora um esconço dester, que pode dar novidades ao mundo!
Domingos estava farto de molhar o aparo no tinteiro e o papel continuava branco, da loja. Que dificil que é dar um passo em frente!
Depois, constatou que, talvez estivesse a forçar-se mal, porque ele pretendia, por sinceridade, apenas, o rialismo quando é verdade, que a sinceridade não põe em nada de lado a imaginação. E, então, a cabeça deu um salto bestial dali, da água-furtada, para as paragens biblibas e outras, que talvez, nem houvesse. Esboçou entusiasticamente a descrição da passagem do Nilo pelas tropas do Pharaó, com os promenores todos, tais quais, mas, antes mesmo de começar a escrever, reconheceu-se sem dados bastantes, não só para atingir a temperatura do Egipto por aquelas idades, antes de Cristo, como tambem para manter um certo rigoroso de indumentaria e Historia, sem as quais ninguem seria susceptivel de convencimento. Até que enfim, já tinha um assunto, este do Egipto, era só uma questão de ámanha ir consultar a biblioteca. Ficava decididamente para ámanha.
Em todo o caso, podia ir ganhando tempo, exercitando-se em pequenos detalhes e, para facilidade de técnica, mesmo para não ficar muito feio, mais expontaneo. O quarto estava cheio de fumo. Foi pôr a janela de par em par. O Tejo pareceu-lhe o Nilo Verde. Tomou uma atitude de pharaó, e todo aquele panorama da Ribeira do Tejo sujeitava-se noturnamente á imaginação crescente. Varias vezes já, tinha-se precipitado sobre a mesa para escrever grandes imagens literárias de que ele próprio ficava admirado de terem sido da ideia dele, mas de todas estas vezes, como uma sina, como uma maldição, o papel continuava branco, como na loja.
Todas as recordações do Egipto do terceiro ano dos liceus estavam sendo feitas condignamente, apenas algumas precipitações de vez em quando, e doutras vezes erros crassos e imperdoaveis, quando, sem o esperar baterem timidamente á porta do quarto. Não era costume, era quase meia noite, e a maneira de bater… o que haverá?
- Quem é?
- Dá licença, sr Domingos?
Era a Rosa, a criada da pensão, que vinha como nunca, longe da mimica atarefada do arranjo dos quartos, como uma pessoa natural, que não está de serviço.
- Venho incomodar?
- Não. O que há?
- Nunca lhe pedi nada ao senhor Domingos… se não fôsse muita necessidade, não lhe pedia… mas eu nunca estive na escola… não me ensinaram os numeros e as letras… esvrevia uma carta ao meu rapaz, sr. Domingos?
Domingos Dias Santos disse que sim, sentou-se, e esperou que ela ditasse:
- Meu querido João do coração.
Estimo que ao receberes esta te vá encontrar de boa saude em companhia da tua mãe e da tua irmã a quem mando muitas e muitas saudades. Dá tambem saudades minhas á minha mãe e diz-lhe que fico bem. Esta tem por fim dizer-te que ainda não me esqueci de ti e que vou depressa para a terra com saudades do meu querido João do coração.
Pede o carro emprestado ao primo Izidro e vai-me esperar á estação com o carro quando eu to mandar dizer. Mais te tenho a contar que não é preciso nada eu estar aqui e fico só para acabar o mez.
Tua querida Rosa do coração e saudades
Envelope:
João Firmino da Rosa. – Moinhos da Charneca. – Fátima.

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in Diário de Lisboa, 26 de Maio de 1921, p. 3
 
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