«Sobre o lado esquerdo» (XVIII)

2005-04-23
HELSINGÖR

Sim, é o castelo do Hamlet
mas o Kronborg que a gente visita à espera do fantasma
e guardando imponente os estreitos do Báltico,
não é na verdade o castelo do Hamlet:
sobre as ruínas deste, uma construção do fim da Renascença,
refeita já barroca após o incêndio
(a guarda, no singular, porque era um indivíduo fêmea,
mostrou-me o que resta do castelo antigo
em góticas de sombra caves calafrio,
feliz por alguém lhe perguntar pelo castelo «autêntico»
onde ademais o doce príncipe é lendário apenas).
Mas, numa das salas térreas do pálacio, onde permitem
que os visitantes aliviem os seus anseios
de escreverem nas paredes a imortalidade efémera,
havia enorme, por entre as inscrições em todas as letras e línguas,
uma em negras majestosas letras: O GRAVANITA ESTEVE AQUI.
Entre mim e o Hamlet, entre a Dinamarca em que algo havia podre
e o portugal que estava em mim, erguia-se como um fedor turístico
(ó Mendes Pintos, Corte-Reais, Dias e Gamas de outras eras!...)
o espectro intenso e inamovível
do senhor Gravanita. TINHA ESTADO LÁ.

Jorge de Sena



Dimitri Kasnopevtsev - 1963



HAMLET - Oh que esta carne suja, tão suja, derretesse,
se diluisse e desfizesse em gotas de névoa,
ou que o Sempiterno não tivesse apontado
a sua lei contra os que se matam. Meu Deus! Meu Deus!
Tão gastos, insípidos, nulos e inúteis
me parecem todos os costumes deste mundo!
Que miséria, é como um jardim abandonado
coberto de ervas bravas; só as coisas mesquinhas e sórdidas
da natureza crescem nele. Como se pode chegar a isto?
Só há dois meses morto – não, nem tanto, nem dois –
um rei tão excelente, que está para este
como Hipérion para um sátiro, tão terno com a minha mãe
que nem as brisas do céu deixava roçar-lhe
a face com menos suavidade. Céus e terra,
serei forçado a lembrar-me? Ela que se abraçava a ele
como se o que lhe saciava o desejo o aumentasse
ainda mais; e no entanto ao fim de um mês –
nem quero pensar – Fragilidade, o teu nome é mulher –
um breve mês, antes de se gastarem os sapatos
em que acompanhou o corpo do meu pai a enterrar,
lavada em lágrimas, como Níobe – ela, sim –
Oh meu Deus, um animal desprovido de raciocínio
teria chorado mais – casada com o meu tio,
irmão do meu pai – mas tão parecido com o meu pai
como eu com Hércules. Ao fim de um mês,
ainda antes que o sal daquelas lágrimas impróprias
lhe tivesse desaparecido dos olhos inflamados,
casou-se – Oh que pressa mais perversa! Saltar
com tanta agilidade para os lençois do incesto!
Não é, nem vai levar coisa boa.
Mas parte-te, meu coração, porque tenho de me calar.

William Shakespeare in Hamlet




Urna Pré-Histórica



 
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