«Sobre o lado esquerdo» (XV)
2005-04-12
Carta a uma jovem comediante
Petite Mademoiselle:
A sua mãe era minha amiga de infância e V. recorda-se de me ter visto quando era ainda pequena e daí testemunhar-me, sem mais nem menos, uma confiança que me embaraça tanto quanto me comove. Não a merecerei se não lhe responder como o teria feito a sua mãe, sem hesitar em causar-lhe um desgosto.
V. representou Esther no Sacré Couer, as Romanesques com os Ligier-Deschamps e La Bergère au Pays dês Loups, aprendeu lições de dicção; a sociedade da nossa cidadezinha reconhece-lhe talento e o título de “artista” não lhe causa mais horror do que eu lhe experimentei quando o deixei há uns quarenta anos. Leu todos os clássicos da biblioteca e a Petite Illustration. Sonhou com as mais belas representações do mundo. É natural que esteja intoxicada e só pense no Teatro.
Não há carreira mais incerta. Não acredito no génio ignorado. Um escritor, um músico, um pintor estão sós perante a sua tarefa: a sua obra só depende deles próprios. Mas o comediante depende dos outros; é preciso que seja repartido para ter a possibilidade de se afirmar; é preciso, depois, que o encenador não se engane a seu respeito, não o force para um “emploi” no qual, se for apenas conveniente, ficará condenado. Há, talvez, actores desconhecidos que tenham tanto talento como os mais ilustres e nunca o tenham podido demonstrar. A sorte desempenha, entre nós, mais frequentemente que noutros casos, um papel terrível.
Claro que não tem medo e está disposta a tentar a sorte. Mas vejamos um pouco de que “sorte” se trata.
V. pertence a uma cepa demasiado boa para ser atraída pelo desejo, mesmo inconsciente, de exibicionismo. V. é demasiado cultivada e os poemas que me manda provam bastantes dons literários – para que não encontre outros meios de expressão sem ser a representar. É, portanto, um terceiro móbil que a solicita, o mais autêntico e o que faz os maiores: V. sente-se demasiado fora do invólucro da sua pele e tem necessidade de a preencher com personagens imaginárias; demasiada sensibilidade numa personalidade deficiente.
Suponhamos que tudo vai pelo melhor V. representa, muito depressa, papéis importantes e que lhe convém. Ei-la em plena euforia. Mas, em cada nova criação, usa um pouco de si própria; a sua personalidade, já bastante frágil, cada vez mais se dissocia. As suas criaturas vivem de si e quanto mais verdadeiro é o seu talento mais completamente precisa de se lhes entregar. Alegremente, a princípio. Mas, depois, por ter representado tantas cenas de amor, sentir-se-á incapaz de amar, na vida; se o tentar, não passará de mais um papel desempenhado, sem dúvida o menos conseguido – e não o ignorará. Quando tiver consciência de que as suas personagens a absorveram, será tomada de pânico: as vedetas quase sempre têm mau carácter, porque julgam afirmar assim uma personalidade que elas sabem muito bem que não têm. As suas exigências absurdas, as suas vontades caprichosas e sempre imperativas mascaram a sua indecisão; autoritárias e inconscientes, a sua vaidade é a confissão de que já não podem ter orgulho. Achamo-las odiosas e ridículas; na verdade, são dignas de dó.
A idade virá depressa. Os papéis mais jovens já nada terão a pedir-lhe. O público, que vai perdendo em qualidade o que ganha em número – o mais elegante é o mais grosseiro e o mais cerebral o menos sensível – tem cruéis exigências que o cinema lhe ensinou. Mlle. Mars interpretava Agnès depois dos sessenta anos; uma plateia de hoje vaiaria Mlle. Mars. Uma noite, rir-se-á porque uma réplica dirá que V. É bela. Outro papel morto. E ainda outro e outro. E quando V. for uma avantajada senhora cheia de gorduras ou uma magrizela – cabeça de múmia sobre um feixe de tendões – quando os seus papéis a tiverem abandonado, não estará apenas só – não será ninguém.
Pense bem nisto, petite mademoiselle. Votar-se ao teatro – se não se é apenas uma empregada, uma roda da engrenagem, mas uma vocação – é aceitar esse fim. O que se chama um “monstro do teatro” é uma vítima marcada pelo sacrifício.
Dito isto, como devia, se, sabendo bem o que faz, mesmo assim decidir fazê-lo, conte que a auxiliarei o melhor que puder a subir ao altar.
Disponha do seu velho amigo.
Gaston Baty
P.S. – Reli esta carta e tudo é demasiado verdadeiro. Uma vida no teatro, sobretudo de uma mulher, tende para esse fim. Mas fora do teatro, é uma vida?