«Sobre o lado esquerdo» (XX)

2005-04-29
Sabiniano

Nasce em Volterra (Toscana).
S. Gregório o Grande noneia-o
cardeal-diácono. Eleito Papa
no ano de 604. Abritui-se-lhe
a introdução dos sinos nas igrejas.
Morre no ano de 606.

Foi criança de uma vida aflautada: sobrou-lhe sempre o pão, todas as vezes a comida esteve quente, trutas assadas e perdizes cozidas, sol, os melhores morangos, leitão de um mês, os mais diversos queijos, água da serra, tudo.
De madrugada, houve amores na sua história: a água, o sol e o dia souberam-lhe sempre beijos.
Por Paula... o vinho foi tanto, que naquela noite colou bem junto ao peito um pouco daquele álcool doente e continuou pela manhã fora com vinho jovem: era o ano de 572 e o seu primeiro dia.
Paula, era, então, uma rapariga ovelha de casta e já boa terra trazia no coração.
Com Paula, Sabiniano ainda moço aprendeu a fiar oiro.
E tanto vindimou sonhos, que sem nunca a ter, nela sentiu uma água magoada.
Desta sorte, e como nunca soube nessa noite semear temporais, nos lábios, os sons da flauta de Paula e o seu vestuário foram para um novo amigo.
Fora dos primeiros amores, talvez o segundo ou terceiro, e pouco escolhidas ainda estavam as uvas para si.
A água, porém, ficou a bailar nos lábios.
Em céu sobre céu outras mulheres, como Júlia conheceu.
Por todo Abril seguinte andou com ela: moço ardido e em boca fresca era bom gastar Júlia e ganhá-la.
Tornou-se líquido: recolhia a casa antes de a sentir deitada, a lua podia-a magoar, a lenha seria para tornar a gastar com ela, a melancia era no verão uma bebida fresca, o morango seria com ela uma bela sobremesa.
Mas o tempo é desleal e no mês seguinte perdi-a.
Digamos que a vida de aflautada começou a tornar-se bebedora: estava o coração onde era a inquietação.
É certo, houve mais amores, os olhos são água e a alegria e o sonho quanto maiores, tanto melhores.
Começa, então, a transportar saudades de uma para outra região e tanto leva para Nápoles o saber fiar oiro, como traz a Roma a lua que podia ter magoado Júlia.
Um dia: de criança aflautada desliza a sumo pontífice, realidade triste, muito triste e mansa, num novo corpo.
O que se passou, não sei: desta sorte, o tempo ou a vida sinta cada um de vós como queira.
Estamos no ano de 604: os olhos já longe desse tempo, insensíveis mesmo, o coração ainda perto, indiferente quase.
Com Sabiniano.
Circunstancialmente com a história dos bispos de Roma: houve quem fosse elevado ao Papado por imperatrizes, reformasse os costumes eclesiásticos, revisse a liturgia, combatesse os hereges, morresse de peste, estreasse a extrema-unção, acabasse os dias no cárcere ou vendesse grande erudição e piedade.
Quem seu carro unta, seus bois ajuda.
De Sabiniano, poucas coisas a dizer: o que os olhos não mostram, o coração inventa.
Quando se sentou pela primeira vez na cadeira pontifícia não esqueceu as manhãs de Abril, os doces dias de Outono, a água fria e bonita, o bom vinho, a arte de fiar oiro, a lenha de Dezembro, a sombra dos carvalhos: os seus amores.
E com saudável dor nos cabelos, água e oiro no corpo, prometeu nunca esquecer a sua antiga vida.
Num pronto, lembrou Paula a som: podia ser o do vento, o da água, acima de todos, o de uma flauta.
Acabado, mostrou-se-lhe o tempo em que era moço ardido e apareceu o nome de Júlia, cheiroso como o coração de uma melancia, aflautado como o seu, a menear como um sino.
Silenciosamente, chamou os mais livres sineiros de Roma e encomendou-lhes sinos, para espalhar por todas as igrejas e capelas de Roma e do mundo: acabava de se explicar ao coração.
De si, pouco ou nada os hagiógrafos deixaram escrito.
Lê-se numa enciclopédia do século dezanove que introduziu o uso dos sinos nas igrejas.

Sá, Ana de, Da vida dos Papas, Fenda, 1990
 
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