Um Oásis no Chiado - texto de Gustavo Rubim no programa do espectáculo Paris É Uma Miragem
2005-06-20
UM OÁSIS NO CHIADO
Parece que há gente incomodada com a insistência da Companhia Teatral do Chiado na montagem de espectáculos cómicos. A peça de John Godber ― Paris É uma Miragem ― é uma comédia que a CTC apresenta no ano do 15º aniversário da sua fundação por Mário Viegas e Juvenal Garcês. A título pessoal, quero, antes de mais, felicitar a CTC pelos seus 15 anos de existência: parabéns e obrigado pela oportunidade que me deram de colaborar convosco e, sobretudo, de ver na vossa Companhia o melhor teatro, o teatro como eu gosto dele, ao longo desses 15 anos. Quero também tentar explicar, em poucas palavras, o péssimo sinal que constitui aquele incómodo português com as comédias da CTC.
Não tenho visto nada mais cínico, em anos recentes, do que a invocação da memória de Mário Viegas para condenar o trabalho e a estética da CTC após a morte do grande actor e encenador, em 1996. Sem excepção, quem invoca a memória de Mário Viegas para atacar a CTC dirigida por Juvenal Garcês são pessoas que não conheceram o Mário, que nunca aderiram ao seu estilo e, muitas vezes, que fazem ou apreciam em teatro coisas que ao Mário eram profundamente repugnantes. Trato-o assim pelo nome de baptismo, porque o conheci pessoalmente e não raras vezes o ouvi lamentar o destino do teatro português, que muito tempo depois do 25 de Abril continuava a ser (como ainda continua em grande parte, na minha opinião) um teatro submisso à ideologia, com ridículas pretensões didácticas ou, o que não é melhor, falsamente vanguardista e esteticista até ao enjoo e ao vazio total. Nada disso lhe agradava, nem de longe.
Como essas, uma convicção que o Mário deixou escrita (e todos podem ler) foi a de que a comédia não é um género menor. Parece ridículo ter de lembrar isto, quando foi na CTC que o Mário fez esse prodígio de comédia política chamado Europa Não! Portugal Nunca!!; quando foi com O Regresso de Bucha e Estica que lançou as raízes da CTC; quando alguns dos maiores êxitos da CTC, no tempo em que o Mário a dirigia, foram as suas encenações do teatro de Eduardo de Filippo, uma das quais ― A Grande Magia ― veio a ser a penúltima que assinou (a última, como é sabido, foi Uma Comédia às Escuras de Peter Shaffer). Por tudo isto e, mais ainda, porque o Mário era um incondicional admirador de Beckett, é que a única explicação razoável para o ataque ao gosto da CTC pela comédia só pode ser esta: através da actual CTC, os velhos inimigos de Mário Viegas continuam a depreciá-lo e a desdenhá-lo, amesquinhando a herança daquela que é, para mim, a maior figura do teatro português contemporâneo.
Há documentos oficiais desse desprezo nada inocente. Uma pessoa com responsabilidades na crítica e no ensino teatrais escreveu, há poucos anos, um balanço do teatro pós-25 de Abril: o nome de Mário Viegas mal aparecia nesse triste atestado de má-fé que destilava veneno em cada linha. Também há explicação para isto: o Mário nunca escondeu o seu apego a uma tradição de teatro popular que, paradoxal e estupidamente, os ideólogos da estética pós-revolucionária tudo fizeram para aniquilar. Com inteira justiça e toda a lucidez, Beckett e Shakespeare eram, aos olhos do Mário, teatro popular (recentemente, em Londres, os Happy Days esgotaram lotações com meses de antecedência). Tal como o recordo, o Mário nunca cometeu o grosseiro equívoco artístico destes 30 anos de teatro em liberdade: colocar Brecht acima de Shakespeare.
O Mário não tinha medo do sucesso nem do público. E nem uma coisa nem outra lhe bloqueavam a criatividade e o sentido poético. O Juvenal, o Simão, o João Nuno, o Vasco Letria e todos quantos têm mantido a CTC, desde 1990 até hoje, conservaram, intensificaram e transmitiram essa lição: a lição do teatro que só responde por si mesmo, do teatro sem limites, do teatro que ama todas as suas possibilidades sem exclusão de nenhuma. Quando tanta gente, sobretudo em lugares de poder político ou cultural, anseia e actua, do modo mais descarado e mais sinistro, pelo fim da CTC, alegra-me especialmente que a CTC responda com uma gargalhada.
Para o Zé e para a Guida, Paris é uma miragem. Mas para a Sofia Duarte Silva e para o Manuel Mendes, a pequena sala do Teatro-Estúdio Mário Viegas oferece-se a todos como um oásis no Chiado. Para os dois, muita merda!
À nossa CTC, ergo a taça e brindo a uma longa vida!
Não tenho visto nada mais cínico, em anos recentes, do que a invocação da memória de Mário Viegas para condenar o trabalho e a estética da CTC após a morte do grande actor e encenador, em 1996. Sem excepção, quem invoca a memória de Mário Viegas para atacar a CTC dirigida por Juvenal Garcês são pessoas que não conheceram o Mário, que nunca aderiram ao seu estilo e, muitas vezes, que fazem ou apreciam em teatro coisas que ao Mário eram profundamente repugnantes. Trato-o assim pelo nome de baptismo, porque o conheci pessoalmente e não raras vezes o ouvi lamentar o destino do teatro português, que muito tempo depois do 25 de Abril continuava a ser (como ainda continua em grande parte, na minha opinião) um teatro submisso à ideologia, com ridículas pretensões didácticas ou, o que não é melhor, falsamente vanguardista e esteticista até ao enjoo e ao vazio total. Nada disso lhe agradava, nem de longe.
Como essas, uma convicção que o Mário deixou escrita (e todos podem ler) foi a de que a comédia não é um género menor. Parece ridículo ter de lembrar isto, quando foi na CTC que o Mário fez esse prodígio de comédia política chamado Europa Não! Portugal Nunca!!; quando foi com O Regresso de Bucha e Estica que lançou as raízes da CTC; quando alguns dos maiores êxitos da CTC, no tempo em que o Mário a dirigia, foram as suas encenações do teatro de Eduardo de Filippo, uma das quais ― A Grande Magia ― veio a ser a penúltima que assinou (a última, como é sabido, foi Uma Comédia às Escuras de Peter Shaffer). Por tudo isto e, mais ainda, porque o Mário era um incondicional admirador de Beckett, é que a única explicação razoável para o ataque ao gosto da CTC pela comédia só pode ser esta: através da actual CTC, os velhos inimigos de Mário Viegas continuam a depreciá-lo e a desdenhá-lo, amesquinhando a herança daquela que é, para mim, a maior figura do teatro português contemporâneo.
Há documentos oficiais desse desprezo nada inocente. Uma pessoa com responsabilidades na crítica e no ensino teatrais escreveu, há poucos anos, um balanço do teatro pós-25 de Abril: o nome de Mário Viegas mal aparecia nesse triste atestado de má-fé que destilava veneno em cada linha. Também há explicação para isto: o Mário nunca escondeu o seu apego a uma tradição de teatro popular que, paradoxal e estupidamente, os ideólogos da estética pós-revolucionária tudo fizeram para aniquilar. Com inteira justiça e toda a lucidez, Beckett e Shakespeare eram, aos olhos do Mário, teatro popular (recentemente, em Londres, os Happy Days esgotaram lotações com meses de antecedência). Tal como o recordo, o Mário nunca cometeu o grosseiro equívoco artístico destes 30 anos de teatro em liberdade: colocar Brecht acima de Shakespeare.
O Mário não tinha medo do sucesso nem do público. E nem uma coisa nem outra lhe bloqueavam a criatividade e o sentido poético. O Juvenal, o Simão, o João Nuno, o Vasco Letria e todos quantos têm mantido a CTC, desde 1990 até hoje, conservaram, intensificaram e transmitiram essa lição: a lição do teatro que só responde por si mesmo, do teatro sem limites, do teatro que ama todas as suas possibilidades sem exclusão de nenhuma. Quando tanta gente, sobretudo em lugares de poder político ou cultural, anseia e actua, do modo mais descarado e mais sinistro, pelo fim da CTC, alegra-me especialmente que a CTC responda com uma gargalhada.
Para o Zé e para a Guida, Paris é uma miragem. Mas para a Sofia Duarte Silva e para o Manuel Mendes, a pequena sala do Teatro-Estúdio Mário Viegas oferece-se a todos como um oásis no Chiado. Para os dois, muita merda!
À nossa CTC, ergo a taça e brindo a uma longa vida!
Gustavo Rubim