«Sobre o lado esquerdo» (VIII)

2005-03-24

António Pedro

Levar o teatro a toda a gente e toda a gente ao teatro, satisfazendo gradualmente as necessidades de distracção, emoção, compreensão, cultura, num grau de categoria que não afronte a mais elementar dignidade, começa aqui a tarefa de quem queira ocupar-se do problema. Não há teatro sem público. Não há teatro que não seja para o público. Se só um público reles vai ao teatro reles, haja um teatro que o não seja para um público que o não queira ser. O abismo abriu-se entre este e aquele. Não é ao público que compete a iniciativa de reconciliação. E como poderia ser ele a interesar-se por aquilo que não existe para o interessar?



Lia Gama em Oh Que Ricos Dias de Samuel Beckett
fotografia de Helena Costa

Antes de mais, para que haja teatro, é preciso que haja teatros, Teatros, com um palco onde se possa representar, com uma plateia pelo menos, onde o público se possa sentar e assistir ao que se passa para lá das luzes da ribalta. Ora, para começar, em Lisboa, excepção feita aos teatros nacionais de D. Maria e de S. Carlos (este reservado à ópera e ao ballet), só servem como teatro as salas que, pela miséria das suas instalações, nenhum empresário quer explorar como cinema. O Apolo e o Avenida não são teatros, são vergonhas. Na plateia, dura e incómoda, não cabem as pernas de um espectador que passe a craveira militar. Corredores sem salas de fumo, todos os outros anexos são piores do que o mais modesto cinema de bairro. São ambos de deitar abaixo, e não se perde nada com isso, desde que antes disso se criem condições decentes para os substituir.



João Carracedo, Simão Rubim e Manuel Mendes
em As Obras Completas de William Shakespeare em 97 minutos
de Adam Long, Jess Borgeson e Daniel Singer
fotografia de Luís Rocha

Em Portugal, quem será capaz de levar Gil Vicente, Camões e António Ferreira, o Judeu, Garrett e até, porque não, Pinheiro Chagas, mesmo D. João da Câmara e Marcelino Mesquita, e Coelho de Carvalho, (...).
Quem levará à cena as peças sérias de Almada Negreiros, cuja novidade envelhece desconhecida, e o mais que há por essas gavetas, sem um Teatro Nacional?
E será apenas esta a sua função? Shakespeare, Molière, Ibsen, Pirandello...Pode-se saber-se alguma coisa de teatro sem se ter passado por esta gente?
Não. Em Portugal não pode haver duas opiniões. O Estado tem que manter um Teatro Nacional como mantém as escolas e liceus, ou deve mantê-los, sem a preocupação de que as propinas paguem a renda dos edifícios e as despesas com professores, contínuos e material escolar.



Simão Rubim e Vanessa Agapito em O Mocho e a Gatinha de Bill Manhoff
fotografia de Ramon de Melo


Uma profissão não se prestigia por decreto e não é para ver diplomas que o público vai ao teatro – é para ver representar. Se os actores perderam o público é porque o público não quer esses actores e quer que venham novos actores para os substituir. Em toda a sua crueldade, o problema é este. Os desempregados do teatro não podem ser desempregados, têm de ser pessoas destinadas a mudar de profissão. Nenhuma consideração sentimental pode mudar a evidência deste postulado. A profissão artística, mais do que nenhuma outra, deixa um rasto de sangue atrás de si. Muitos são chamados a ela e poucos os escolhidos. É indespensável um permanente sacrifício de vidas na sarça ardente desta relegião. E quem tiver medo do risco de ser sacrificado, escolha outro ofício por seu. (...).
Abram-se as portas do teatro a quem nele queira consumir a sua mocidade e o seu talento. Deixem falhar quem tem de falhar, morrer quem tiver de morrer, chegar ao prestígio e à fama quem possuir talento e sorte para consegui-lo.



Vanessa Agapito em A Casa da Boneca de Henrik Ibsen
fotografia de Luís Rocha

Como diz o crítico americano George Freedley, «acreditamos que enquanto houver gente no mundo capaz de gozar o contacto emocional e intelectual com a voz dos seus poetas e dramaturgos, através de bons actores, num ambiente propositado para esse fim, nenhum processo mecânico pode substituir o palco».

António Pedro
 
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