«Sobre o lado esquerdo» (VIII)
2005-03-24
Levar o teatro a toda a gente e toda a gente ao teatro, satisfazendo gradualmente as necessidades de distracção, emoção, compreensão, cultura, num grau de categoria que não afronte a mais elementar dignidade, começa aqui a tarefa de quem queira ocupar-se do problema. Não há teatro sem público. Não há teatro que não seja para o público. Se só um público reles vai ao teatro reles, haja um teatro que o não seja para um público que o não queira ser. O abismo abriu-se entre este e aquele. Não é ao público que compete a iniciativa de reconciliação. E como poderia ser ele a interesar-se por aquilo que não existe para o interessar?
Antes de mais, para que haja teatro, é preciso que haja teatros, Teatros, com um palco onde se possa representar, com uma plateia pelo menos, onde o público se possa sentar e assistir ao que se passa para lá das luzes da ribalta. Ora, para começar, em Lisboa, excepção feita aos teatros nacionais de D. Maria e de S. Carlos (este reservado à ópera e ao ballet), só servem como teatro as salas que, pela miséria das suas instalações, nenhum empresário quer explorar como cinema. O Apolo e o Avenida não são teatros, são vergonhas. Na plateia, dura e incómoda, não cabem as pernas de um espectador que passe a craveira militar. Corredores sem salas de fumo, todos os outros anexos são piores do que o mais modesto cinema de bairro. São ambos de deitar abaixo, e não se perde nada com isso, desde que antes disso se criem condições decentes para os substituir.
em As Obras Completas de William Shakespeare em 97 minutos
de Adam Long, Jess Borgeson e Daniel Singer
fotografia de Luís Rocha
de Adam Long, Jess Borgeson e Daniel Singer
fotografia de Luís Rocha
Em Portugal, quem será capaz de levar Gil Vicente, Camões e António Ferreira, o Judeu, Garrett e até, porque não, Pinheiro Chagas, mesmo D. João da Câmara e Marcelino Mesquita, e Coelho de Carvalho, (...).
Quem levará à cena as peças sérias de Almada Negreiros, cuja novidade envelhece desconhecida, e o mais que há por essas gavetas, sem um Teatro Nacional?
E será apenas esta a sua função? Shakespeare, Molière, Ibsen, Pirandello...Pode-se saber-se alguma coisa de teatro sem se ter passado por esta gente?
Não. Em Portugal não pode haver duas opiniões. O Estado tem que manter um Teatro Nacional como mantém as escolas e liceus, ou deve mantê-los, sem a preocupação de que as propinas paguem a renda dos edifícios e as despesas com professores, contínuos e material escolar.
Uma profissão não se prestigia por decreto e não é para ver diplomas que o público vai ao teatro – é para ver representar. Se os actores perderam o público é porque o público não quer esses actores e quer que venham novos actores para os substituir. Em toda a sua crueldade, o problema é este. Os desempregados do teatro não podem ser desempregados, têm de ser pessoas destinadas a mudar de profissão. Nenhuma consideração sentimental pode mudar a evidência deste postulado. A profissão artística, mais do que nenhuma outra, deixa um rasto de sangue atrás de si. Muitos são chamados a ela e poucos os escolhidos. É indespensável um permanente sacrifício de vidas na sarça ardente desta relegião. E quem tiver medo do risco de ser sacrificado, escolha outro ofício por seu. (...).
Abram-se as portas do teatro a quem nele queira consumir a sua mocidade e o seu talento. Deixem falhar quem tem de falhar, morrer quem tiver de morrer, chegar ao prestígio e à fama quem possuir talento e sorte para consegui-lo.
Como diz o crítico americano George Freedley, «acreditamos que enquanto houver gente no mundo capaz de gozar o contacto emocional e intelectual com a voz dos seus poetas e dramaturgos, através de bons actores, num ambiente propositado para esse fim, nenhum processo mecânico pode substituir o palco».
António Pedro