«Ninguém se mexa! Mãos ao ar» (XIX)

2005-03-03

PEQUENA AUTOBIOGRAFIA

Eu nasci num dia de muita chuva, assim o afirma a minha mãe com espanto sempre que a nove de Dezembro a impertinência de umas nuvens breves a desaponta para lá das janelas. O meu pai desejava galhardamente que eu fosse um menino e essa foi a única alegria que eu lhe dei. (Fi-lo sem querer.) Na minha infância aprendi a recitar La Fontaine com a mais correcta das pronúncias, enquanto uma prima da minha bisavó nos chás das quartas-feiras declamava com agrado geral os alexandrinos arrebatados dos cardeais ceando. Ainda hoje se o astro rei brilha pelas alturas, este facto deve-se à modéstia da prima Adelaide que, enfim, não quis deixar Salamanca às escuras...

Depois fui crescendo e tornei-me grande. Tal sucede não apenas aos poetas mas a todos os meninos. (Há igualdade que vão mais cedo para o Céu e pelos quais não devemos chorar, pois foi Deus quem os chamou.) O Primeiro de Maio de mil novecentos e setenta e quatro, passei-o em casa, muito certo de que os acontecimentos daquele dia pelas ruas fora e pelo mundo não poderiam ser mais importantes que os desenrolados na Sagrada Rússia, cento e sessenta e dois anos atrás... – virando na expectativa as folhas do segundo volume. No Liceu de Pedro Nunes conheci por momentos uma felicidade impar, embora não me apercebesse na altura que os meus colegas eram mais puros dos heróis e que Virgílio acompanhava-me por todos os infernos e paraísos daqueles velhos corredores. Como a juventude desdenha a evidência! (Passados os vinte e cinco anos, ser-me-á permitido ironizar algum remorso mais vivo que desde então silenciosamente vem-me doendo – e muito.)

Quando constatei que o meu país não possuía um verdadeiro “teatro nacional” – lida algures esta expressão –, resolvi com toda a seriedade emendar este estado de coisas lamentável. Mas como? Da maneira que melhor me pareceu, ou seja, a leitura dos eternos clássicos traduzidos para português. Convenci-me logo que estava nas minhas capacidades escrever peças muitíssimos melhores – oh bem capaz! Então aqueles é que eram os shakespeares, os racines, os imortais do siglo de oro? Que esperassem por mim e já veriam... – até que um dia, por um desfastio fatal que me salvou, resolvi lê-los, aos coitados dos clássicos, na língua de origem. Hoje admiro-os inexcedivelmente, notando com orgulho a sua influência pelas entrelinhas do que escrevo. Azar aos tradutores da terra portuguesa!

... de resto, continuo a crescer. Em vez de grande, tendo agora tornar-me um pouco sábio, o que ninguém ignora constitui nestes tempos velozes o maior risco para se cair em pleno ridículo. Que faço na vida? Para além de uma dúzia de peças já escritas – estão na gaveta –, gosto de caminhar por Lisboa, aprecio o castelhano desembaraçadíssimo da santa de Ávila e tenho longas conversas de madrugada com a minha prima Adelaide, se estais lembrados. Há amores eternos. Concluímos teimosamente que as coisas vão mal, poderiam ir bem pior todavia! Melhorarão proventura se com esforço e honestidade... – ambos cremos que sim.

Miguel Rovisco




“Autor de «Trilogia» premiada – Miguel Rovisco morre aos 27 anos”, in A Capital, 1987-X-07

Autor de «Trilogia» premiada
Miguel Rovisco morre aos 27 anos

O dramaturgo português Miguel Rovisco, de 27 anos, suicidou-se no sábado – revelou o actor Mário Viegas.
O dramaturgo, que deixou mais de 20 peças (escritas desde 1984) e centenas de poemas, morreu debaixo de um comboio, e o funeral realizou-se domingo, aparentemente sem que quase ninguém tivesse dado por isso, para além da família.
Vencedor do Prémio Nacional de Teatro, para o melhor texto dramatúrgico, em Março deste ano, pela sua «Trilogia Portuguesa», Miguel Rovisco, até há poucos meses funcionário público recusou-se então a aceitar a parte pecuniária do mesmo (300 contos) e apresentou-se de negro e de corda ao pescoço no palco do Teatro de D. Maria II, como forma de protesto contra os responsáveis pela sala. Na altura, o jovem dramaturgo acentuou que protestava daquela forma porque a Companhia Nacional de Teatro já deveria ter apresentado a sua obra, e sem cortes, como se propunha fazer.
Na verdade a trilogia premiada ainda não chegou a ser vista, mas está programada para a temporada 87/88 daquele teatro nacional.
Uma das peças de outra obra do mesmo autor, «Trilogia dos Heróis», foi em 10 de Junho apresentada pelo Teatro Experimental do Porto, sob direcção de Mário Viegas, no Festival de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI).
A «Trilogia Portuguesa», obra que arrebatou no início deste ano o Prémio Nacional de Teatro, é composta pelas peças «O Bicho», sobre o marquês de Pombal, «A Infância de Leonor de Távora» (a marquesa de Távora) e «O Tempo Feminino», sobre D. Maria II.
Quanto à «Trilogia dos Heróis», é formada por «Um Homem Dentro Dum Armário», «Um Homem para Qualquer Pátria» (a que foi já representada no Porto) e «O Homem da Pluma Azul» todas elas passadas na madrugada de 1 de Dezembro de 1640, o dia da restauração da independência portuguesa.
Miguel Rovisco, considerado a maior revelação da dramaturgia portuguesa na presente década, elaborou igualmente adaptações de grandes clássicos da literatura portuguesa, incluindo «Eurico, o Presbítero», de Herculano, «O Arco de Sant’Ana», de Almeida Garrett, «Vilhalpandos», de Sá de Miranda, e «A Queda de Um Anjo», de Camilo. Escreveu, também, «Os Velhos e Mistófeles», uma glosa a «Os Velhos», de D. João da Câmara, mas nenhuma das suas obras chegou a ser editada.Por outro lado, é o autor do guião de uma série que Herlânder Peyroteo tem estado a rodar para a RTP.
 
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