Oh Que Ricos Subsídios! (II)

2005-01-14
A CTC diverte-se a esmiuçar as actas do IA do MC

Candidatura 017 (alcunha: «O Bando»)

Olá! Cá estamos para mais uma fantástica acta do Instituto das Artes (IA), editor da Obra Completa da Ana Marin ― esse génio da burocracia ― em envelopes A4 com aviso de recepção!
Conhecem Palmela? É a terra do Bando. Conhecem o Bando? Ninguém conhece. Vivem todos na clandestinidade, à excepção do chefe: chama-se Brites, uma espécie de Viriato da Margem Sul.
O IA adora o Brites. Deu-lhe a bela maquia de 450.000€ e só não deu mais, chora a acta, por causa da «contenção orçamental». É uma promessa: quando a retoma atirar às urtigas a chatice da contenção, há-de chover cacau suficiente para que o Bando seja promovido a Tribo!
Os provisórios 90 mil contos estão muito bem justificados nesta acta comovente até à gargalhada. Ora leiam: «Apesar de ocupar um lugar privilegiado em Palmela (uma quinta em Vale de Barris, de uma considerável extensão, cedida pela Câmara Municipal), as instalações de que se serve para apresentar as suas produções são manifestamente inadequadas, barracões sem condições de conforto.» (Desculpem, é só secar as lágrimas, já continuamos.)
A lógica neo-realista do IA é imbatível. A trupe do Vale de Barris esfalfa-se a produzir em instalações «manifestamente inadequadas» e, vai daí, merece um prémio de consolação: 450.000€ para o Bando, de bandeja. Adequar as instalações? Dar conforto aos barracões? Qual quê! Fica assim, não se macem com os espectadores! Afinal, o Bando não é dono da quinta, limita-se a «ocupar», é um bando de okupas que invadiu um «lugar privilegiado»!
Temos de ser uns para os outros. O IA é muito para o Bando. Não só no pilim, como nas palavras. Passa página e meia a lambê-lo de elogios que é para o Bando não ficar triste, coitadinho. O Bando «tem sabido renovar-se» (está irreconhecível!); o Bando acolhe o público «em atmosfera de cumplicidade» (há festa no barracão!); o Bando constrói «dispositivos cénicos de reconhecido valor plástico e forte sentido simbólico» (a Mónica Garnel está melhor?); o Bando reencontra-se com «uma ideia de inserção comunitária e gosto da ruralidade» (vá, pega na enxada!). A gramática do elogio é má? Não. É plástica, cúmplice, de forte sentido simbólico: o IA exprime-se em dialecto de Palmela!
Agora reparem nisto: «É um dos grupos que mais se preocupa em elaborar reflexão sobre o seu próprio trabalho, tendo publicado até ao presente dois manifestos e um livro (sobre os 20 anos do Bando).» Ou seja: são rústicos mas não são broncos. Pasmem: 2 manifestos e 1 livro em 20 anos! Dá uma média vertiginosa de 1 manifesto e 1/2 livro de 10 em 10 anos, uma avalanche reflexiva ― Stanislavski encafuado no Vale de Barris! Os célebres manifestos do Bando, quem não os conhece? Um bando de 2 manifestos perdidos numa época que se marimba para manifestos. Olhamos para o anacronismo e ficamos em choque: então eles publicam 2 manifestos (e 1 livro) e só levam 450.000€? Oh maldita contenção!
E teatro, o Bando faz teatro? Claro. Nas pausas de abundantes livros e manifestos, garante o IA, «têm podido desenvolver aspectos de localização do teatro nos espaços naturais (uma forma de site-specific, se quiséssemos adoptar um certo jargão anglo-saxónico)». Mal se percebe, é verdade, mas fica logo claro como azeite virgem quando o IA dá o exemplo da estrondosa «realização internacional» do Bando que se chamou «Uma noite de teatro europeu no meio das oliveiras». Se podemos dizer «no meio das oliveiras», para quê os aspectos de localização que se desenvolvem, para quê adoptar em vão «um certo jargão anglo-saxónico»? O «site-specific» é lá para os saxões. Português castiço é o teatro no meio das oliveiras. Os palmelenses distinguem as duas coisas perfeitamente: pelas azeitonas que lhes caem em cima da cabeça quando vão ao Bando para ver «teatro europeu». E a moda pegou: o Berliner Ensemble vai encomendar ao Bando «Uma tarde de teatro germânico no meio das couves-galegas»!
Mas o Bando não se fica pela Europa. Atira-se ao teatro português. E escolhe autores que são o máximo da teatralidade nacional: Ramos Rosa, Torga, Teolinda Gersão, Hélia Correia, «entre outros», diz a acta. Como novidade, jurou a pés juntos ao IA que vai «encomendar a autores peças originais» (e adaptará Inês Pedrosa, mas aí não há novidade). Ora, toda a gente conhece o episódio do amigo do Brites que, um dia, lhe perguntou, à mesa do café: «Ó Brites, pá, quando é que tu te decides a fazer peças?» «Peças?! O que é isso?», perguntou perplexo o chefe do Bando. A acta do IA mostra que o amigo se deu à pachorra de lhe explicar! Lá está: temos de ser uns para os outros.
Esse anónimo sabe mais de teatro que o IA (não é difícil, valha a verdade). Só o IA é que se lembrava de achar «não apenas razoável, mas também, e sobretudo, recomendável» que o Bando reponha um espectáculo inspirado no Ensaio sobre a Cegueira. Já não basta o Saramago escrever livros? Também precisa dum Bando a fazer divulgação pelas aldeias? Das duas uma: ou este júri não joga com o baralho todo, ou a Ana Marin é do PCP!
Qual das duas hipóteses é melhor? Pensem nisso e preparem-se para a próxima acta. Um abraço, camaradas (good fellows, se quiséssemos adoptar um certo jargão anglo-saxónico)!
 
posted by CTC at 18:39, |