in Diário de Notícias | Suplemento NS' 10 de Maio 2008

2008-05-12


Companhia Teatral do Chiado

O segredo do sucesso

A festejar 18 anos de existência, a Companhia sonhada por Mário Viegas tem nas Obras Completas de William Shakespeare em 97 Minutos o seu ex-líbris.
A peça está há 12 anos em cena, sem fim à vista, com uma lista de espera de três meses e um letreiro de "esgotado" que nunca sai da vitrina da bilheteira. Sem preconceitos nem subsídios: "Pelo público, para o público, com o público"

Texto Pedro Coimbra do Amaral Fotografia Patrícia de Melo Moreira

OLHA PARA ELA A RIR-SE, não percebeu nada, coitadinha!" A loira, o velho, a tia, o emigrante... Estereótipos sociais desenhados para fazer rir sem parar. "Shakespeare já o fazia, era popular, não trabalhava para as elites, fossem elas culturais ou económicas." O verdadeiro truque? "A simplicidade! Em tudo na vida, é o mais difícil de conseguir", diz Juvenal Garcês. Este é apenas um dos segredos do êxito da Companhia Teatral do Chiado (CTC). Das apostas que se faziam nos primeiros tempos sobre o fim prematuro da Companhia até às bilheteiras sucessivamente esgotadas passaram 18 anos - cheios, acima de tudo, de gargalhadas.

Tudo começou em Londres. Mário Viegas e Juvenal Garcês, fundadores da CTC, viajavam pelo mundo fora. "Para ver peças e conhecer lugares diferentes! Víamos muito teatro." Numa dessas viagens, uma peça escrita pelos ingleses Adam Long, Jess Borgeson e Daniel Singer captou-lhes a atenção e o sorriso. "A peça estava esgotada há anos, a produção era enorme, o Mário adorou", lembra Juvenal Garcês. Coincidência ou não, na mesma cidade, uns anos antes, conheceram também Simão Rubim, que viria a ser a principal figura das Obras Completas.

"Tínhamos estado a ver uma peça com o Dustin Hoffman. Esperámos para falar com ele no final, mas saiu por uma porta lateral e o Mário começou logo a reclamar que não podia ser, era uma vergonha, quem é que ele pensava que era...

Nisto, aparece um sujeito alto, outro actor que entrava na peça e nem sabíamos quem era." Simão: "Era eu... Fui ter com ele e perguntei-lhe: 'É o Mário Viegas, não é?' Ficámos amigos logo ali, deixei Londres e vim para Portugal, para a Companhia, ganhar 30 contos. Pouco? Era o Mário Viegas, isso não tem preço!' O actor e declamador nunca veria em palco a peça que o fez sorrir. "E era difícil, fazia rir mas não dava gargalhadas! Morreu um mês antes da estreia. Foi complicado para nós, mas decidimos ir para a frente, por ele", recorda Simão Rubim.



As Obras Completas de William Shakespeare em 97 Minutos têm o título mais longo de que há memória.... E também não há nenhuma outra que em Portugal esteja há tanto tempo em cena, sem interrupções e quase sempre com o mesmo elenco. Desde 1996, cerca de 1200 espectáculos, mais de 180 mil espectadores e centena e meia de digressões pelo País e estrangeiro.

Juvenal Garcês, director da Companhia desde 1996, explica. "Há uma coisa que não se faz cá em Portugal, até pelo facto de haver poucas salas disponíveis, que é manter em cena as peças enquanto têm espectadores. Fazemo-lo por respeito as pessoas que gostam e enquanto vierem fá-lo-emos, não temos final previsto."

A farsa, elaborada a partir das 37 peças do dramaturgo inglês e da centena e meia de sonetos que deixou ao mundo, deveria decorrer em 97 minutos. João Carracedo, Manuel Mendes e Simão Rubim viajam em palco a uma velocidade alucinante. Trocam de roupa num piscar de olhos, multiplicam as cenas de trás para a frente, em câmara lenta, em várias línguas... Na maior parte das vezes, o serão prolonga-se e chega a ultrapassar as duas horas e meia.

"E um espectáculo vivo, as piadas não são sempre as mesmas porque vive muito da actualidade", explica João Carracedo.

Manuel, João e Simão são amigos e cúmplices em palco e fora dele. Afinal, estão juntos quase todas as noites de há 12 anos para cá, agora apenas às segundas e terças-feiras. "Imaginem a paciência que é preciso para aturar estes dois gajos este tempo todo , graceja Manuel.

Há repetentes na sala. É habitual. Alberta Osório, de 43 anos, já viu a peça quatro vezes, a primeira há dez anos: "Volto porque me faz rir do princípio ao fim, tem um ritmo que nos agarra e nunca é igual à noite anterior."

"Dizem-nos muitas vezes que para tragédia basta a vida. Quando ouço pessoas do pseudoteatro sério a dizerem que a comédia é um género menor é porque são ignorantes. O objectivo do que fazemos é transmitir emoção, rir, chorar, o que for, desde que seja verdadeiro. Acho que essa atitude fechada de muitos actores e encenadores do nosso país é que afasta as pessoas dos teatros.

Não fazemos isto para os nossos amigos ou para o nosso grupinho, mas para as pessoas", diz Simão Rubim.

A interactividade com a plateia está sempre presente. "Depende das pessoas que estejam, da noite, do fait divers que estiver em voga na altura", acrescenta João Carracedo. "Muitos espectadores ficam com medo de os irmos buscar para fazer palhaçadas. Normalmente não levam a mal, porque e tudo brincadeira, mas já tivemos algumas situações complicadas." "Casamentos, pessoas a saírem a meio, padres que se sentiram insultados com as piadas contra a Igreja a dizer que iam preparar o nosso funeral, padres que se fartaram de rir e que nos deram a bênção, famosos, políticos, como Durão Barroso ou Mota Amaral, que se desunhou a rir... temos de tudo", recorda Manuel Mendes.

JUVENAL GARCÊS fundou a CTC com Mário Viegas, em 1990. Seis anos depois, quando o amigo morreu, assumiu a direcção. "O que me diria ele se estivesse aqui sentado?" A voz tornase embargada, a emoção enche-lhe os olhos, e deixa escapar, em tom baixo e humedecido: "Ficaria contente..."

Pelos corredores, ainda desertos, do Teatro Estúdio, em cada recanto encontrar-se um pouco da memória de Mário Viegas. Rita Lello, uma das mais antigas do grupo e actualmente protagonista em As Vampiras Lésbicas de Sodoma - um cabaret clássico que parodia o thriller e o terror -, que já vai no terceiro ano em cena, conheceu Mário ainda pequena.

"Estive cá com ele até aos 16 anos, depois andei por aí, e regressei com as Vampiras. O que se faz aqui tem sempre um cunho de sensibilidade, de transmissão de um olhar para o mundo, que hoje é o olhar do Juvenal, fragmentado, generoso, caótico, satírico, cáustico.

Onde se sente mais a presença do Mário aqui? Ele queria exprimir e exercer a sua sensibilidade sem a tutela de ninguém. Mesmo que cá não esteja, está, e conseguiu-o."

Juvenal sorri. "O Mário dizia muitas vezes: 'Não quero ficar na rua da PIDE, não quero!' E não ficou - estamos de costas para ela!"

Fundador Mário viegas, actor, encenador e director teatral, morreu num dia de mentiras, 1 de Abril de 1996, há 12 anos. A Companhia Teatral do Chiado funciona desde a sua criação, em 1990, na sala Teatro Estúdio - que hoje tem o nome do fundador -, quando a Câmara Municipal de Lisboa, então presidida por Jorge Sampaio, lhe cedeu uma das salas do Teatro Municipal do S. Luiz. Após o falecimento do Mário Viegas, Juvenal Garcês assumiu a direcção artística e geral. A Companhia Teatral do Chiado estreou-se no dia 16 de Novembro de 1990, no Seixal.

 
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